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quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Morte de Muammar Kafafi

Felipe Schroeder Franke

No início de fevereiro, quando a Primavera Árabe chegou à Líbia, não havia fotos dos protestos. As poucas notícias do descontentamento da população líbia com Muammar Kadafi, um dos mais longevos governantes do mundo árabe contemporâneo, colocava este desértico país do norte da África na linha de contestação política que então nascia a partir da vizinha Tunísia. Mas as únicas imagens de que se dispunha eram fotografias oficiais de manifestações arregimentadas na capital Trípoli em apoio a Kadafi e seu regime.
Hoje, cerca de dez meses depois, o corpo de Muammar Kadafi foi estendido sobre uma rua de Sirte, após ser encontrado, baleado e morto em uma pequena tubulação embaixo de uma casa. Sobre o cadáver do ditador, incontáveis líbios se aglomeravam para, com celulares e câmeras em mãos, fazer a sua própria foto. As agências internacionais rechearam jornais de todo o mundo com imagens estáticas e em movimento, documentando esparsamente o capítulo final do ocaso do coronel de Sirte.
Da falta quase total de imagens dos protestos de janeiro à abundância quase banalizante de fotos da morte em outubro, a diferença entre as duas situações dificilmente poderia ser mais radical. De modo proporcional, a situação da Líbia enquanto país, nação e regime dificilmente poderia ter mudado de maneira mais radical. Em menos de 10 meses, o país passou do rígido controle exercido pela Trípoli de Kadafi sobre as outras cidades litorâneas da Líbia à virtual instauração de um novo regime, ancorado em uma polêmica intervenção internacional e apoiado pela maioria das potências ocidentais.
A Primavera da Tunísia estourou durante algumas poucas semanas, até que, em janeiro, o presidente Ben Ali decidiu fugir de Túnis, abrindo espaço para o governo provisório. A Primavera do Egito queimou por mais tempo, e de modo mais centrado: foram milhões concentrados na Praça Tahrir, no coração do Cairo, gritando, cantando e rezando até a renúncia de Hosni Mubarak.
Na Líbia, a Primavera entrou Outono adentro. Varreu o país de Oeste a Leste e de Leste a Oeste algumas vezes, enquanto as forças leais a Kadafi avançavam e recuavam no controle de cidades estratégicas em disputa com os rebeldes. A violência da repressão contra a população, que, em protesto, por vezes era atacada com bombas, levou a comunidade à ação e, posteriormente, à intervenção. A entrada dos aviões de França, Reino Unido e Estados Unidos no campo de batalha abriu espaço para o mandato da Otan, que instaurou uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia, atravancando a chacina contra os rebeldes.
Com o apoio internacional, os rebeldes trataram de atacar militar e politicamente. Durante meses, avançaram em direção à Trípoli, tomando aos poucos o controle das cidades de Zawiyah, Ras Lanuf, Misrata, Tobruk, Bin Jawad, Ajdabyia e Brega. Em ritmo similar, os rebeldes encontram unidade para formar o Conselho Nacional de Transição, que tomou a rebelde Benghazi, no leste, como capital rebelde. As batalhas pelas cidades eram mescladas com guerras no deserto de mais de mil quilômetros estendido na costa até Trípoli. A capital líbia foi capturada no final de agosto, mas foram necessários mais dois meses de combates em torno dos pequenos e resistentes bastiões do antigo regime.
Durante estes meses de guerra civil, que deixaram mais de 20 mil mortos segundo as últimas e desatualizadas especulações do CNT, Kadafi permaneceu em constante contato com seus seguidores. No início, eram longos discursos televisionados através da televisão estatal. À medida que seu poder ia arrefecendo, as transmissões televisivas foram sendo substituídas por mensagens de rádio ou fotografias. Em todas, Kadafi tinha uma mesma mensagem: que a população jamais o abandonaria e que ele jamais deixaria sua terra. A primeira parte estava errada. A segunda, correta.
A Primavera Árabe é comumente definida como um movimento pró-democracia, conceito pouco concreto que abarca um sem-número de ideias, muitas vezes contraditórias, sobre como melhor funcionam as sociedades. E a situação na Tunísia (que no próximo fim de semana passará por uma Assembleia Nacional Constituinte para começar a delinear o futuro Estado tunisiano) e do Egito (que ainda vive sob uma junta militar e ainda engatinha para eleições parlamentares) evidencia a complexidade do tortuoso processo por que estes países passarão nesta e, provavelmente, outras décadas.
A situação na Líbia é igual, ou ainda mais delicada. É verdade que há vantagens: a população líbia possui um alto grau de instrução, um dos benefícios proporcionados por Kadafi que, há 42 anos, encerrou uma monarquia instaurada por governos ocidentais na Líbia. O país, além disso, é rico: tem no petróleo uma moeda de troca que atrai capital estrangeiro. Mas os próximos meses dirão quão profundo foi o vácuo político e institucional deixado por Kadafi, o coronel que conseguiu governar um país por quase meio século sem nem mesmo dispor de uma constituição.
A partir de agora, os rebeldes líbios terão de largar as armas e assumir a posição de políticos do establishment. Os líbios irão se confrontar com o passado ditatorial e o que ele dirá e ensinará sobre o futuro, que a partir de agora é presente. No entanto, este processo não incluirá o julgamento devido do coronel. Tal como Bin Laden, Kadafi não será levado a um tribunal para ter seu passado colocado na balança da Justiça, que talvez encontrado hoje uma forma violenta, confusa, e historicamente muito carregada, nas ruas de Sirte, a cidade natal do supremo líder.

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