"Câmara
aprova texto que contraria interesses poderosos, garante direitos aos
internautas e trata a comunicação como direito fundamental, e não uma
mercadoria". A análise é de Pedro Ekman e Bia Barbosa, integrantes da
Coordenação Executiva do Intervozes em
artigo publicado por CartaCapital,
26-03-2014.
Eis o artigo.
Guardem
o dia 25 de março de 2014 na
memória. Este dia será lembrado como o dia do Marco Civil da Internet em
todo o mundo. Neste dia, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que
tem todas as características de um projeto impossível de ser aprovado numa Casa
como essa. A principal delas: o fato de contrariar interesses econômicos
poderosos ao garantir direitos dos cidadãos e cidadãs. O Marco Civil da Internet aprovado
aponta claramente para o tratamento da comunicação como um direito fundamental
e não apenas como um negócio comercial. Trata-se de algo inédito na história
brasileira, que só foi possível por um conjunto de fatores.
Em primeiro lugar, a intensa
participação e mobilizações de organizações da sociedade civil e ativistas da
liberdade na internet, que estiveram envolvidos com o Marco Civil desde sua
primeira redação até a vitória obtida nesta terça-feira na Câmara. O fato de
ser um texto elaborado com ampla participação popular garantiu ao Marco Civil
uma legitimidade conferida a poucas matérias que tramitam pelo Congresso
Nacional.
Em segundo lugar, o relatório
substitutivo do texto ficou a cargo do deputado Alessandro Molon (PT/RJ), que
se mostrou um persistente articulador e negociador, ouvindo os mais diferentes
interesses em jogo e buscando acomodá-los sem comprometer os três pilares
centrais do texto: a neutralidade de rede, a liberdade de expressão e a
privacidade dos usuários.
Em terceiro, o governo, que
já se mostrava adepto do Marco Civil, comprou a briga em sua defesa após as
denúncias de espionagem da Presidenta Dilma feitas
por Eduard Snowden.
Sem isso, talvez o Marco Civil da internet não tivesse sido colocado em
urgência constitucional na Câmara, e poderia estar ainda na longa fila de
projetos estratégicos para o país à espera de entrada na pauta do plenário.
Mesmo
assim, há duas semanas, ninguém – nem o governo, nem o relator, nem a sociedade
civil – seria capaz de prever uma votação como a deste dia 25 de março, feita
simbolicamente, porque apenas um partido, o PPS de Roberto Freire, orientou voto
contrário. Como escrevemos neste blog, a votação do Marco Civil havia sido
capturada pelo jogo eleitoral de 2014.
De
lá pra cá, muitos se perguntam, o que precisou acontecer para o jogo virar a
favor dos direitos dos internautas? Em primeiro lugar, o governo conseguiu
reacomodar a maior parcela insatisfeita de sua base. Dilma fez uma
reforma ministerial, distribuiu cargos em autarquias, liberou emendas no
Congresso. Trazendo a base de volta, ficaram “do lado de lá” o PMDB e os
partidos de oposição de direita. Mas DEM e PSDB se mostraram
inteligentes nesta jogada, e se distanciaram de Eduardo Cunha, líder do PMDB e general do
exército contra o Marco Civil. Em sua briga contra o governo por poder no
Congresso, Cunha,
apelidado pela revista IstoÉ de
“sabotador da República”, esticou demais a corda – e saiu queimado. Nem a
direita clássica quis abraçá-lo na reta final.
Os
sinais de derrota começaram a se avizinhar e ficou mais fácil para o governo
comprar o passe do PMDB.
A conta ninguém conhece ao certo, mas certamente envolve acordos em torno da MP
627/2013, sobre tributação do lucro de empresas brasileiras no exterior, da
qual Cunha é relator. Em paralelo, o governo abriu mão da obrigatoriedade da
manutenção de data-centers no Brasil – o que fez bem – e incluiu uma consulta
à Anatel e
ao Comitê Gestor da
Internet no Brasil (CGI.br) na regulamentação das
exceções à neutralidade de rede.
Neste
contexto, a permanente pressão da sociedade civil nas redes, em defesa da
aprovação do texto, surtiu efeito pra lá de positivo. Cerca de 350 mil pessoas
assinaram a petição online puxada por Gilberto
Gil; tuitaços com as hashtags #VaiTerMarcoCivil e #EuQueroMarcoCivil atingiram
os trend topics brasileiro e mundial por semanas seguidas; artistas e o
fundador da Web Tim Berners-Lee declararam apoio ao texto; e defensores da
liberdade de expressão marcaram presença nos corredores da Câmara por semanas a
fio. Nesta terça, o clima de “aprovou” era tal que o presidente da Casa, Henrique Eduardo Alves, chegou
a anunciar, em tom de brincadeira com os ativistas, uma cerveja de celebração
para o fim da noite.
Que
partido então escolheria não sair bem na foto e poder dizer que votou em favor
de uma lei tão importante para o povo brasileiro?
Os avanços do Marco Civil
O
ineditismo do Marco Civil da
Internet está também em ser uma das raras legislações
do mundo no campo da internet que cria mecanismos de proteção do usuário, e não
o contrário. Será uma lei que servirá de modelo para todas as democracias que
buscam reforçar a liberdade nas redes e os direitos humanos.
Entre
tantas garantias importantes trazidas pelo texto, as mais significativas talvez
estejam expressas nos artigos 9, 19 e 7 do projeto.
O artigo 9, visto como o
coração do projeto, protege a neutralidade de rede. Ou seja, o tratamento
isonômico de quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino,
serviço, terminal ou aplicação. Isso significa que quem controla a
infraestrutura da rede tem que ser neutro em relação aos conteúdos que passam
em seus cabos. Isso impede, por exemplo, que acordos econômicos entre
corporações definam quais conteúdos têm prioridade em relação a outros. A
medida é a alma da manutenção da internet como um ambiente em que todos se
equivalem independentemente de seu poder econômico. Afinal, ninguém – nem mesmo
empresas como a Globo –
quer que a operadora do cabo decida sozinha que conteúdos terão forte presença
e quais ficarão escondidos na rede. Isso levaria a uma “concentração de
conteúdo”, semelhante à que existe no mercado de TV, também na internet. Só que
a Globo não seria a monopolista da vez.
Já
o artigo 19 delega
ao sistema judicial a decisão da retirada de conteúdos na internet, debelando
boa parte da censura privada automática, preventiva, existente hoje na rede.
Atualmente, inúmeros provedores de conteúdo, a partir de simples notificações,
derrubam textos, imagens, vídeos etc de páginas que hospedam. Ao
desresponsabilizar os provedores por conteúdos postados por terceiros, o Marco Civil da Internet cria
uma segurança jurídica ao provedor e deixa o caminho aberto para a livre
expressão do usuário. Afinal, ao contrário do que muitos pensam, não é a
ausência de regras que torna a internet um ambiente livre, mas sim a existência
de normas que defendam a livre manifestação de ataques arbitrários e
autoritários.
Por
fim, o artigo 7 assegura
a inviolabilidade da intimidade e da vida privada e o sigilo do fluxo e das
comunicações privadas armazenadas na rede. Isso fará com que as empresas
desenvolvam mecanismos para permitir, por exemplo, que o que escrevemos nos
e-mails só será lido por nós e pelo destinatário da mensagem. Assim, uma
vantagem privativa das cartas de papel começa a ser estendida para os correios
eletrônicos. O mesmo artigo assegura o não fornecimento a terceiros de nossos
dados pessoais, registros de conexão e de aplicação sem o nosso consentimento,
colocando na ilegalidade a cooperação das empresas de internet com
departamentos de espionagem de Estado como a NSA.
Essas
e outras medidas de proteção da privacidade são fragilizadas pelo único
problema significativo de todo o Marco Civil: o artigo 15, que compromete
seriamente nossa privacidade ao obrigar que empresas guardem por seis meses,
para fins de investigação, todos os dados de aplicação (frutos da navegação)
que gerarmos na rede. Isso inverte o princípio constitucional da presunção de
inocência ao aplicar um tipo de grampo em todos os internautas. A obrigação da
guarda de dados também gera a necessidade de manutenção de todos esses dados em
condições de segurança, sobrecarregando sites e provedores de encargos
econômicos. O alto custo poderá levar à comercialização desses dados, criando
uma corrida pelo uso da privacidade como mercadoria.
Infelizmente,
as movimentações que destravaram o processo de votação do texto na Câmara não
foram capazes de desconstruir tal imposição feita pelas instituições policiais
ao projeto. Organizações da sociedade civil que se posicionaram contra este
aspecto do texto buscarão sua alteração no Senado ou, se necessário, através do
veto presidencial. Afinal, se Dilma
Rousseff foi às Nações
Unidas exigir soberania e privacidade para suas
comunicações, não pode repetir uma brecha deste tamanho para a vigilância dos
internautas brasileiros.
Por
fim, os lobbies econômicos
e pressões políticas que se movimentaram na Câmara não estão mortos. Apesar da
declaração do presidente do Senado, Renan
Calheiros, de que o Marco Civil será votado com rapidez na
Casa revisora, nada garante que o jogo será fácil. Há uma longa jornada pela
frente até a sanção presidencial. E, depois de sancionada a lei, caberá à
sociedade civil defender os direitos dos internautas nos termos de
regulamentação do Marco Civil, assim como em sua implementação. Não à toa, a
entidade representativa das operadoras de telecomunicações já se pronunciou
publicamente, afirmando que o Marco Civil “assegura a oferta de serviços
diferenciados”. É a disputa pela interpretação do texto entrando em campo.
Democracia
não é um sistema em que as coisas se resolvem facilmente. A batalha ganha em 25
de março não resolve toda a questão, mas cria condições para a construção de um
caminho no qual finalmente podemos seguir livres. E isso não é pouca coisa.
Fonte
: Instituto Humanitas Unisinos
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